sábado, 4 de novembro de 2017

continhos carinhosamente tensos

um velhinho transita com sua bengala do outro lado da rua, gritando coisas ininteligíveis, mal vestido, pois com roupa curta no frio. enquanto isso, uma senhora bem vestida, com suas calças sujas de mijo que usa pra esquentar nas noites frias, um blusão furado pelos cigarros e um casaco sem botões, pés quase descalços, senta-se no meio fio ao meu lado. ela tira do bolso um pedaço de pão e oferece a mim. eu agradeço, olhando nos olhos ternos da minha benfeitora, e digo a ela que minha fome não pode ser saciada com comida, mas com algo maior que ela já estava proporcionando a mim. ela carinhosamente me abraça e eu sinto uma vontade quase incontrolável de estrangulá-la, pois sinto uma gratidão tão grande, que quero muito retribuir. porque morrer de morte matada é uma honra no mundo em que estamos. mas não sou uma pessoa tão boa assim e não sei expressar corretamente a gratidão.

no parque, crianças rastejam à procura de pedras que brilham no escuro, mas só conseguem encontrar umas poucas raízes secas. à medida em que o tempo vai passando, as crianças vão adolescendo, ficando disformes e famintas. até chegar ao ponto em que começam a devorar umas às outras, na busca de saciar a fome e, principalmente, reunirem-se em uma pessoa só. ao sobrar somente uma, deixa de rastejar e começa a andar com os joelhos no chão e as mãos na cabeça. vários apedrejamentos, corpo múltiplas vezes violado pelos transeuntes bem intencionados, acaba por receber o maior presente de todas as vidas que carrega em si, na forma de um atropelamento por um veículo oficial.

falha mecânica leva à alcova o filho de alguém que não importa, a não ser para as estatísticas. a criança exercia suas atividades profissionais como gostava tanto, abrindo e fechando a máquina de fabricar sonhos, quando um sonho escapou e lhe atingiu. o menino descobriu, então, que era capaz de imaginar-se com um sorriso no rosto e perdeu o controle de si, indo parar na máquina que fabricava ilusões, muito parecida com a qual trabalhava, e sofreu farturas múltiplas de euforia, sendo levado com urgência ao refeitório, que também funcionava como banheiro e enfermaria, sendo medicado com antiempolgante por acidente, deixando-o completamente paralisado. a família não foi notificada, pois os irmãos precisavam terminar o lote de esperança de última geração, enquanto os pais ocupavam-se em cuidar que os meninos ficassem separados das meninas, tarefa pela qual recebiam meio quilo de ração por turno trabalhado, descontado o horário de beber água.


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