sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

pipoca dentro do peito

meu coração tá espremido contra o concreto. não é por coisas do coração, mas por culpa de gente que não tem coração. e é assim, mesmo. olhar pela janela e enxergar a cada dia novos pedintes, quase todos pretos ou quase pretos, disputando um espaço pra cuidar carros ou atrapalhando as pessoas que não enxergam que aquela pessoa que tá ali na sua frente é um espelho pro futuro, porque todo mundo tá tomado no cu, mas quem passa pelos pedintes e acha que pertencem a uma outra espécie acha também que por isso jamais tomará no cu, no que estão muito enganados. essa visão que tenho ainda me faz agravar a situação, pois me coloco a pensar que o cara que tá ali pedindo tá fudido, porque precisa depender da boa vontade do outro, o que é praticamente impossível de conseguir; o outro tá fudido porque não sabe que logo vai estar disputando espaço na marquise, porque acha que porque consegue fazer três refeições por dia é mais bem sucedido do que o pedinte. daí eu me ponho a observar isso e achar que só eles estão fudidos nessa história. daí que tudo isso espreme o coração contra o concreto

sábado, 25 de novembro de 2017

o clichê da clepsidra

 o tempo é um clichê
    que os filósofos
       e os amigos
            usam
              pra
              esco
             ndere
           m a inca
         pacidade hu
       mana de super
    ar nossos conflitos

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

a língua no divã

- minha missão é tragar o abstrato e atenuar o sono
foi isso que disse ao analista, depois de algumas horas de silêncio perturbador no qual nos encontrávamos. eu, sentado num conjunto de almofadas com cheiro sufocante de mofo, mirando a fumaça do incenso. ele, numa cadeira de mesa de bar, os olhos direcionados ao meu nariz
- talvez seja uma uma vontade de falar só por falar e por isso você tem dito essas coisas - abrindo uma caixa com vários rótulos de embalagens antigas e colocando-os, um a um, no lugar do meu rosto. enquanto isso, eu estava firme e categórico
- eu vim justamente pra sorver o que tem nome, mas está fora da capacidade dos sentidos físicos do ser humano em perceber e fazer com que exista somente uma determinada preguiça, mas sem deixar que as pessoas adormeçam
- e qual é a finalidade disso?
- talvez seja uma necessidade sem uma finalidade específica. aliás, a finalidade é algo que preciso inalar
- onde está tentando chegar?
- ora, o senhor é o psicólogo! é pra isso que vim parar aqui!
- mas pelo que estou percebendo, o seu problema não é para um psicólogo, mas para um linguista
nesse momento, comecei a encarar meu terapeuta com um ar de indignação
- quer dizer que estou há horas buscando uma resposta de quem não a tem?
e é quando percebo uma leve perda de entusiasmo no olhar do sujeito
- quem foi que disse que eu teria alguma resposta? aliás, você sequer me deixou transparecer que teria alguma dúvida ou pergunta
uma frustração enorme me abateu e eu suspirei fundo
- veja, havia uma questão no ar e eu a traguei
a conversa já estava entediante, fazendo com que o analista ficasse com os olhos pesados
- por favor, doutor! não vá dormir justamente agora que estou a lhe fazer demonstrações das minhas afirmações, que por vezes aparecem como dúvidas
e daí o tempo passa para o agora e futuro
o terapeuta fecha os olhos e suspira fundo
faz umas anotações numa folha e me entrega, onde lerei:
- tarefas: escrever numa folha tudo que for abstrato tragado, com hora, local e testemunhas; deixar os outros descansarem em paz; procurar um profissional da área das linguagens para interpretarem e ajudarem a encontrar respostas para as dúvidas e questionamentos que descobrirá
amassarei o papel com toda a força que as minhas mãos poderão utilizar, mas o guardarei no bolso. sairei do consultório resmungando e tragando incógnitas

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

tudo é sempre outra coisa

juro que vim aqui escrever um poema, mas só me saem coisas estranhas, sem sentido. acho que tá na hora de parar de fazer sentido, se é que alguma vez eu fiz. talvez alguém da academia conseguisse remexer nas coisas e encontrar algo que o valha, mas tenho certeza de que nada daqui desperta interesse. é como a história da minha miga formiguinha, que encontrei encolhida num canto, depois de fazermos amizade e eu sonhar que ela havia se tornado gigante. é como o conto da alice na páscoa. mas o fato é que eu queria muito escrever um poema, daqueles tão enigmáticos, cheios de significados, que todo ano sai uma tese apontando uma nova forma do que diz ali. em vez disso, saem repetições, aliterações surradas, joguinhos inúteis de palavra e significados minguados. no máximo, um clichê de uma declaração de paixão travestida de historinha de gato sonhador, ou um passeio de automóveis. mas nada de poético. talvez devesse começar a tentar algo mais concreto, como um viva a vaia, ou algo mais fabricado, numa lata de sopa fotografada. quem sabe eu comece a me apropriar de coisas alheias e invente algumas colagens. pode ser que assim eu consiga ser poético, embora não inventivo, como a poesia é. aliás, a poesia não está morta, como os esforçados fabricantes de livros gostam de fazer parecer.  a poesia tá no auge, mas fora das palavras escritas. também é possível que a poesia esteja no espontâneo, na escrita sem freio e sem revisão, sem aquele planejamento e aquelas maluquices de ficar anos trocando letra por letra num caderno rabiscado. se ela tá no léxico, é bem provável que seja assim, na falta de talento, daí que eu tenho alguma chance, ou no que não é. mário quintana escreveu que tudo é sempre outra coisa, então, quem sabe, chegou a hora de fazer outra coisa.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

era pra ser uma canção de amor

não sei se rio ou se largo sua mão
nem se espero ou trapasso
se transpasso
e você nem aí
fazendo pose de bem-me-quer embrutecido
mas uma causa é certa: o que sinto
cinto, sinto
aperta e dá agonia

não sei se apago ou afago
se perco ou já perdi
se cheguei ou nem fui
se rio ou se largo sua mão
se ultrapasso as linhas
e você aí, como quem mal-me-quer delicadamente
como tudo que você prepara
- é a fome e o desejo

outra certeza: nada tem mais vida que a dúvida
por isso acabo esperando eternamente
por um sinal que talvez jamais venha,
senhora Liberdade

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

papel transparente
picado
é pecado
é confete

fogueira flamando
pirada
é pecado
é enfeite

agonia no asfalto
aguardente no barro
aguardando o pecado
pescando na lona
piscando na luna

papel picado é pecado
enfeite é pecado
confeite é pecado
fogueira é redenção pra lunático
sempre há um assunto fresquinho pra gente se debruçar e ficar tempos e tempos comparando com um já caduco. uma atualizaçãozinha aqui, uma reverberaçãozona mais a diante e não há oxalá que atualize as pessoas em relação às coisas. o ruim disso tudo é a necessidade de dar explicação pra tudo, desde um nome científico até pra um neologismo ou expressão idiomática. e tudo se desmancha no ar, de tão sólido. e há um certo ar de fracasso nisso tudo. creio que fracassamos ao tentar dissimular. a gente vai fingindo ser outra coisa, mas é tudo o mesmo com roupa remendada ou nova - muitas vezes comprada em brechó. particularmente, eu queria que as coisas continuassem todas do jeito que são, mas que as pessoas mudassem. e que essa mudança fosse um tanto de troca de uns pelos outros, quanto do jeito que cada um é. seria tão simpático se outros habitantes chegassem por aqui com assuntos comuns, mas hábitos diferentes.
mas por enquanto, não podemos trocar, nem mudar as pessoas. uma lástima. que Oxalá tenha piedade.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

poema comum

Agarra as flores que estão no copo
 e lavra a tenra terra
 pra onde elas irão
 Morde o lábio, respira raso
 aprofunda as raízes envenenadas do amor
 obstrui o labirinto formado pela passagem da água
 Nada disso adiantará
 É preciso bem mais que esforço
 pra limitar o desejo
 onde já jaz a insatisfação líquida.

sábado, 4 de novembro de 2017

continhos carinhosamente tensos

um velhinho transita com sua bengala do outro lado da rua, gritando coisas ininteligíveis, mal vestido, pois com roupa curta no frio. enquanto isso, uma senhora bem vestida, com suas calças sujas de mijo que usa pra esquentar nas noites frias, um blusão furado pelos cigarros e um casaco sem botões, pés quase descalços, senta-se no meio fio ao meu lado. ela tira do bolso um pedaço de pão e oferece a mim. eu agradeço, olhando nos olhos ternos da minha benfeitora, e digo a ela que minha fome não pode ser saciada com comida, mas com algo maior que ela já estava proporcionando a mim. ela carinhosamente me abraça e eu sinto uma vontade quase incontrolável de estrangulá-la, pois sinto uma gratidão tão grande, que quero muito retribuir. porque morrer de morte matada é uma honra no mundo em que estamos. mas não sou uma pessoa tão boa assim e não sei expressar corretamente a gratidão.

no parque, crianças rastejam à procura de pedras que brilham no escuro, mas só conseguem encontrar umas poucas raízes secas. à medida em que o tempo vai passando, as crianças vão adolescendo, ficando disformes e famintas. até chegar ao ponto em que começam a devorar umas às outras, na busca de saciar a fome e, principalmente, reunirem-se em uma pessoa só. ao sobrar somente uma, deixa de rastejar e começa a andar com os joelhos no chão e as mãos na cabeça. vários apedrejamentos, corpo múltiplas vezes violado pelos transeuntes bem intencionados, acaba por receber o maior presente de todas as vidas que carrega em si, na forma de um atropelamento por um veículo oficial.

falha mecânica leva à alcova o filho de alguém que não importa, a não ser para as estatísticas. a criança exercia suas atividades profissionais como gostava tanto, abrindo e fechando a máquina de fabricar sonhos, quando um sonho escapou e lhe atingiu. o menino descobriu, então, que era capaz de imaginar-se com um sorriso no rosto e perdeu o controle de si, indo parar na máquina que fabricava ilusões, muito parecida com a qual trabalhava, e sofreu farturas múltiplas de euforia, sendo levado com urgência ao refeitório, que também funcionava como banheiro e enfermaria, sendo medicado com antiempolgante por acidente, deixando-o completamente paralisado. a família não foi notificada, pois os irmãos precisavam terminar o lote de esperança de última geração, enquanto os pais ocupavam-se em cuidar que os meninos ficassem separados das meninas, tarefa pela qual recebiam meio quilo de ração por turno trabalhado, descontado o horário de beber água.


coisa-significado-coisa

muda o assunto, os sacrifícios continuam. não há nada de novo, de novo. de novo, a esperança dá com a cara na porta da angústia e o que aparentemente deveria ser um período fértil é de total desertificação. sangrar não é para os fortes, nem repara o frasco. então, preparem-se: vem na sequência um mundo cheio de chavões, lugares comuns, frases imperfeitas e trocadilhos. e nem vocês, nem eu, nenhum de nós será capaz de passar incólume e respirar nesse ar rarefeito de rimas sórdidas e vocabulário pouco habitual, mas vazio de conteúdo. a merda já não significa a própria merda. chegamos ao ponto em que temíamos há tempos e agora não sabemos como sair. e não temos direito de pedir ajuda a quem quer que seja, nenhuma divindade ou espiritualidade irá nos ajudar, porque fomos nós que não ouvimos os avisos.
e fora da representação estão as coisas. se temos problemas com os nomes, o mesmo se passa com elas. perdemos o controle das nossas vidas justamente por causa disso e não temos mais tempo para ter esperança. o tempo é de fazer as coisas trabalharem a nosso favor. o problema é que perdemos muito tempo aprendendo a dar nomes, falar das virtudes, desqualificar e comunicar sobre, que esquecemos como funcionam na prática. temos que aprender a sair do significado e partir pra concretude, pra praticidade e pro pega pra castrar.
de minha parte, já que não aprendi nada além de coisificar palavras, me resta a prisão perpétua das coisas nomes, pois que palavras também são coisas e pra que todos possam cuidar das ruas, das casas, da comida, do sanitário, e de tudo que nos faz idiotas neste mundo, alguém precisa tomar conta dessa desgraça na qual foi jogado o ser humano.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

desenvolvi uma série de padrões pra não usar nenhum deles, porque o trabalho árduo empregado no planejamento, no ensaio e erro, nas epifanias e nos ajustes práticos é que fazem tudo na vida valer a pena. não que eu deixe de gostar do resultado final ou que o considere descartável, mas porque ao final as coisas perdem um pouco a graça e se o produto pronto for o que mais importa, provavelmente a vida deixe de valer a pena ao terminarmos. do contrário, sempre se terá a intenção de repetir, retentar, tentar outra coisa e dar capo. e quanto mais longa a jornada até atingir o ponto ideal, é importante que o sujeito tenha empregado a vida toda ali. por isso, tenho certeza de que as minhas realizações só serão concretizadas e acabadas no meu leito de morte, porque aí sim estarei plenamente satisfeito e contente por terminar. do contrário, seria torturante e humilhante viver uma longa vida à sombra de uma grande conquista na infância ou adolescência. melhor sempre ter algo errado pra consertar e refazer.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017


cor
tei
mun
dos

cos-tu-rei fundos
só pra soprar no teu ouvido
que um dia
ah, um dia...

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

tá ali a parede, toda clarinha, limpinha. uma formiga perdida transita, à procura de um caminho. mas não há caminho. a formiga não vê nada além da tinta solúvel em água, na cor creme. não há sequer uma rugosidade. nada. uma enorme parede cuja única ~imperfeição~ seria a de servir de chão para uma única pobre formiguinha preta.
mas há possibilidades: a época é dos ventos e a qualquer momento a nossa amiguinha pode ser jogada ao chão, onde há mais opções de trilhas.
e a formiguinha segue
aguardando o sopro do vento
enquanto pisa na parede chata e monocromática
enquanto eu estou aqui
só conseguindo torcer pra que chegue logo esse vento
ou que alguém chegue e esmague a coitada de uma vez
e acabe com a tortura da falta de rumo da pobre

segunda-feira, 1 de maio de 2017

criptografia

resigna-te ao pó
de onde vieste
e ao qual voltarás
ao adubo do asfalto
e aos pés de rosas secas

desconecta-te de tudo que é cândido
e reconstrói a ofensiva
~ mãos à obra ~

mãos às sobras
calejadas mãos sombrias

desintegra-te no ar
de tão sólido que és
vira pó
vira tormento
e desfalece

desempacota a candura
e joga no fogo toda essa penúria
~ às favas com a obra ~

mãos às sobras
mãos geladas à sangruia

domingo, 30 de abril de 2017

a-cróstico dístico policromático

tem dias em que a necessidade é feita pelo prazer. hoje eu tô só por uma dose daquelas que fazem a gente relaxar, ouvir a música do estalo das cadeiras e reunir todas as personalidades numa só. cada vez que uma coisa dessas acontece, o sentido começa a se fazer sozinho, sem o esforço mental que normalmente precisamos.
lentamente, quero que o meu corpo vá levitando, que o chão torne-se fofo, que a cama seja gelatinosa. só preciso de uma pequena dose e logo desaparecerão os problemas sofridos graças à ganância dos ricos e os desamores da vida. depois de tomar a dose, tenho certeza de que a vida ressurgirá na plenitude do colorido da chuva, ou do prateado da pradaria.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

recado recebido, recado repassado

recado recebido
a arte é um ofício
assim como consertar relógios parados
e apertar botões em fábricas
não há enfeites

por isso, são preferíveis o álcool, o ópio, o ácido
o amor, o sexo e o termogênico
porque são capazes de fazerem a mola desencolher
e o reboot é só um foda-se

e poemas forçados não são poemas
escritos pretensiosos como este
costumam ser tão nocivos quanto apertar o botão azul
ou reciclar plástico
recado repassado

quinta-feira, 20 de abril de 2017

depois da frente fria, a preguiça

e de repente, depois da frente fria, veio o gelo interior. calafrios, dores inexplicáveis nas articulações e uma sensação de que tudo já deu o que tinha que dar. seria o momento certo pra tomar uma atitude adiada há muito. mas não seria possível, já que era preciso lavar a louça antes e não deixar nada para trás. e aí está: uma vida salva pela preguiça!

e de repente veio a frente fria

e de repente veio a frente fria afiar suas garras no meu apartamento. chegou acompanhada de uma garoa fininha e gelada, anunciando que é a época de se foder na vida, de olhar pra baixo e se enrolar nos cobertores. é a época de pensar que o cara que passava bêbado do outro lado da janela agora estava por aí. aquele amigo ocasional, que pedia pra despejar uns goles de cerveja numa garrafinha de água mineral, provavelmente estava mijando nas próprias calças pra aquecer o corpo por alguns instantes. é a época de comemorar porra nenhuma, a não ser a ausência do suor. então veio a frente fria pra mostrar o que é possível, sim, se desfazer daquela vontade de sair na rua pra dar aquela caminhada noturna no clima agradável. veio pra foder com a vida dos solitários, dos mendigos e de quem não tem nenhum tipo de aquecimento em casa. com ela, chegaram as músicas melancólicas, o desapontamento de um copo de água morna e uma vontade enorme de acender uma fogueira no meio da sala. aquela vontade de sentar no banco do parque ao sentir-se como um pato morto e secar-se no sol gelado. o ateísmo acompanha a frente fria, assim como a incredulidade na humanidade. e de repente veio a frente fria

terça-feira, 11 de abril de 2017

o inverno dentro do peito

era pra ser uma canção
mas a preguiça resolveu
que não


cão que morde é de lata
lado a lado ao lada
carro caro
coisa russa
reversa
conversa!
desconversa e segue o urso
que ladra, mas não morta
que morda! que merda!

mas se tu soubesses o inverno que faz aqui
dentro do peito
não teria inventado essa fuga
e se a cada passo que dei
por teres me deixado a pé
até descobririas meu desejo

mas cão que morde vira lata
ladra ao lado da ladra
e, caro carro,
minha vida está russa
reinventa
e diz que não vai conversar
sobre a ursada que sofremos
do lado de lá

sábado, 8 de abril de 2017

se drummond escrevesse um poema falando de mim
eu me chamaria joaquim
não sei formar quadrilha
nem me fingir de joão
nem pra pinto fernandes eu sirvo


sexta-feira, 7 de abril de 2017

tortura

o tempo tortura, com seu conta-gotas do caralho a quatro. a gente fica esperando a próxima gota, sempre achando que será de água fria, mas tem vezes em que é chuva ácida, trazendo cinza de vulcão ou um granizo enorme a estocar no crânio. e a gente dorme mal, não se alimenta direito e acaba recorrendo aos vícios. mas o tempo tortura, pela angústia que alimenta e nos faz querer apressar as coisas. hoje, mesmo, deu vontade de apressar a visita que os desenganados recebem dos antepassados quando a hora chega. porque o tempo tortura

quinta-feira, 6 de abril de 2017

por um novo período literário

tô escrevendo um poema revolucionário, cheio de palavras difíceis e versos irregulares. as rimas são diferentes, não mais por semelhança sonora, mas por aproximação semântica. talvez seja uma atualização dos luzíadas, mas ainda não tenho muita certeza, já que não entreguei a nenhum especialista. na verdade, não entreguei a ninguém, porque o poema pra ser revolucionário precisa chegar chegando, de surpresa, fazendo estardalhaço. não vou transcrever nenhum trecho aqui, porque vai que algum espertinho resolva se apropriar e registrar minha ideia original, genial e revolucionária. mas posso garantir: trata-se do início de uma nova vanguarda, um novo movimento, que talvez eu chame de pós-pós. já ultrapassamos todos os póses e creio que é chegado o momento de alguém romper com isso tudo, mas ao mesmo tempo resgatar. então, creio que o nome do movimento seja tão genial quanto o poema que estou escrevendo. falando nele, digo que não trata de sentimentos, nem da questão social, muito menos é metapoema. é um pós-não-poema, que contém inovações nos silêncios, sarcasmo metafórico e escárnio humanizatório. a mim, pouco importa se a poesia morreu em josé paulo paes, mário quintana, drummond e leminski. agora chegou o momento dos que estão além do tempo e do espaço ficcional e lírico! o período literário chamado pós-pós está a caminho e é melhor começarem a pensar nas questões do enem!

quarta-feira, 5 de abril de 2017

vendo

desacostumei de olhos nos olhos
tá tudo errado, tá tudo errado
planejar, cumprir metas, cuidar milimetricamente de cada ato ou ação, tudo isso é entediante, estressante e humilhante, como tentar armazenar água num filtro de café, ou aparar um gramado com navalha
por isso, prefiro a desorientação e o disperdício, especialmente do essencial
daí que acabei desacostumando com o olho no olho
justamente porque sinto a matemática no olhar do outro
e isso é desolador
tá tudo errado, tá tudo errado

comecei a vender algumas coisas as quais não tenho usado
minha paciência, minha solidão, meu prazer
tudo porque estou entrando para o grupo de pessoas que precisam do feijão e já estão dispensando o tempero
vendo tudo
com os olhos que não batem nos outros olhos
só não vendo minha dignidade, porque alugá-la me trará mais retorno
e é o meu bem mais dispensável



segunda-feira, 27 de março de 2017

a distopia (ou a desesperança)

era a era de balizar o basilar, mas sem o registro régio, ainda que parecesse pleonástico. mas tá, não vou encher esse texto de frases de efeito ou aliterações imprestáveis, só pra deixar ele bonitinho. trato do período em que precisávamos botar as tremas na linguística, mas sem precisar das atas. nada de conformidades e regimentalismos fanáticos. tudo precisava ser rediscutido. mas a língua padrão era insuficiente, então, passamos a discutir tudo através da estética do curto e grosso. chegamos a um consenso: estávamos fodidos e a merda era tão grande que precisávamos falar muito tempo e desabafar bastante, ainda que fossem coisas sem sentido aparente. estávamos fodidos, porque a arte popularizada vinha empacotada, cheia de metáforas desnecessárias, ou através de clichês, que mais pareciam chicletes mascados. a merda era tão grande porque aqueles que pretendiam mudar as coisas gostavam mais do próprio discurso do que o que ele significava. costumavam citar grandes pensadores, mas na hora de botar a citação em ação, tudo era "na prática, a teoria é outra". uma bosta! cada um queria receber o seu quinhão de amor, mas os mesmos cada um não queriam ser os doadores desse amor. queríamos que só os outros fossem honestos. então, discutimos e chegamos ao consenso, como falei. todos concordaram que do jeito que estava não dava mais pra ficar. decidimos mudar tudo. estávamos todos de acordo que deveria ocorrer a mudança. fizemos virar lei, que jamais foi cumprida.

sexta-feira, 24 de março de 2017

dê um rolê nos laboratórios

o laboratório era pra estar cheio de amor. claro, me refiro aos laboratórios das ciências naturais. mas ali só se encontra assepsia e método. tudo no devido lugar, organizado e burocrático. nada de risos, abraços e declarações sentimentais. a ciência tenta afastar-se do coração, por alguma razão que o próprio coração desconhece. deveriam tocar novos baianos dentro de todos os laboratórios! novos baianos e raça negra. assim, poderíamos ter esperança de que, um dia, as descobertas nos dissessem mais respeito e nos fizessem mais sentido!

sábado, 18 de março de 2017

retorno

para M. H., que me botou de pé
e quem quero botar de pé também
que provavelmente irá, mas que tenho certeza de que voltará
pra encher uma mesa comigo


não falta amor: faltam coisas que permitam o amor. falta que o mundo permita. falta que a brutalidade do asfalto permita o nascimento da flor. falta meu rock'n'roll no teu tecno. falta eu com minha guitarra no teu sampler. falta meu thc no teu lsd. falta nosso sexo sem limites e sem restrições. falta o teu "fico encabulada" no meu "te acho maravilhosa!". falta a gente se encontrar novamente. falta independência. falta ar. quando os olhos batem e um beijo entre a bochecha e o canto da boca...
falta nosso banho de ervas
falta a gente junto
falta provar que gêmeos e câncer dá certo, sim!
falta o teu francês no meu espanhol
me fazes falta

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

das convicções sem provas

dizem que a verdade passeia pelas cabeças de muitas pessoas, deixando um pedacinho de si em cada uma delas. dizem, também, que cada pedacinho da verdade está totalmente nu e cada pessoa o veste ao seu gosto pessoal. é raríssimo encontrar alguém que tente primeiro juntar o maior número de pedacinhos pra ver qual roupa combina melhor ou, ainda, se não é melhor deixar tudo exposto para que cada qual perceba da forma mais próxima possível daquela entidade que vagueia pelas sentenças. a maioria esmagadora prefere o mais fácil: cobrir a nudez repugnante do seu pedacinho da verdade com aquela sua roupa fabular. daí nascem as injustiças.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

hoje, encontrei e perdi uma amiguinha

uma formiga bem pequenininha corre pelo chão do meu apartamento. penso em gravar um vídeo dela, mas algo me detém. fico observando por um bom tempo, enquanto o bichinho corre pra lá e pra cá. talvez procure uma saída, talvez comida. talvez os dois. fico tentando adivinhar, enquanto faço perguntas em pensamento: "o que tu procura, amiguinha?"; "pra que tanta pressa? para um pouquinho, que eu tenho açúcar na dispensa e te coloco um punhadinho perto". imagino que ela faça o mesmo: "moço, como eu faço pra chegar ao térreo?"; "onde fica o vaso de plantas mais próximo?". percebo que estamos incomunicáveis! fico preocupado com a solidão da minha amiguinha e que, por mais que eu me aproxime dela e tente ajudá-la, certamente assustarei a pobre e solitária formiguinha. por um instante, chego a pensar em esmagá-la e livrá-la da solidão e da angústia de não encontrar o que procura. mas me dou conta de que é a única vida animal presente comigo no momento e me solidarizo com ela. penso em dar-lhe um nome. talvez lucinha, que pode servir também como apelido. mas acabo desistindo e preferindo chamá-la só de amiguinha, pois já estou quase adormecido e não me vejo em condições de bolar um nome que combine com ela. depois de um tempo, já com os olhos muito pesados, quase fechando, começo a desconfiar de que estou sonhando e que em instantes essa formiguinha se transformará numa formiga gigantesca que sairá derrubando tudo por dentro de casa, pulará pela sacada e irá perambular pelas ruas. um grito vindo da calçada me desperta. como perdi a minha amiguinha de vista, corro para a sacada, temendo estar sonhando e que ela estivesse ainda crescendo, a ponto de desafiar um cão de rua que vive nos arredores. mas foi só uma brincadeira entre amigos bêbados, tentando usar a voz em falsete. volto ao sofá e encontro minha amiguinha encolhida num canto. espero que esteja dormindo, mas que não sonhe que eu encolhi ao seu tamanho.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

sobre a lucidez

jejum incômodo esse
que acomete minha loucura
- há um tempão que não perco a cabeça
disfarço, quebrando alguns utensílios e rasgando dinheiro
grito na rua, falo sozinho
só pra que não percebam
minha carência de insanidade
sinto saudade
de quando corri riscos
escrevi desaforos
declarei amores
mas o jejum veio pra me fazer pagar contas em dia
manter o cabelo curto
lavar a louça
e fazer planos

domingo, 5 de fevereiro de 2017

contraste

há um contraste inquietante passando pela janela do meu quarto. há pouco, dia. agora, noite. um pedaço de parede clara divide o espaço com baluartes e um fundo escuro. uma pomba dorme no ninho enquanto um morcego dá um rasante estridente. o calor quase insuportável jogando com o piso frio. uma lâmpada acesa e uma vela apagada. sem que eu esperasse, a campainha rompe o silêncio e a calmaria. uma visita falsa corre na calçada quando chego à sacada. arrastando os pés, retorno ao conforto da cama, ainda molhada de suor. um travesseiro perfumado e o outro com cheiro de amaciante de roupas. novamente a campainha e dessa vez só um perfume sobe à sacada. alguém fuma na esquina, um grupo de simpáticos malandros gargalham mais longe. já é hora, mas me nego a fechar a janela da sacada, pois a brisa da noite e o luar acabam por iluminar e refrescar meu son(h)o.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

eu e os outros

a única vez em que tive meu próprio rosto foi quando nasci. ao entrar em contato com a equipe de obstetrícia, fui adquirindo outras formas. depois, meus pais, os outros bebês da maternidade, as outras crianças na rua, os irmãos. veio a escola e os colegas me doaram um pouco dos seus traços, assim como receberam alguns meus. na faculdade, a mesma coisa. no trabalho, troquei de características a cada emprego que passava, com cada colega e com cada pessoa que atendia. veio o retorno à sala de aula e, com ela, o intercâmbio facial com outras pessoas. fui adquirindo e doando detalhes, expressões, belezas e feiuras com cada um com quem mantive contato e, aos poucos, minha cara foi se tornando a soma de todas as caras que percebi na vida.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

um gato chamado bola de pelo

bola de pelo é um gato estranho. gosta de cerveja e cigarros. notívago, mas caseiro. costuma tomar diariamente latas e mais latas de cerveja na sacada do apartamento onde mora. raramente sai e mais raramente ainda encontra alguma gata. tanto é que até hoje, dizem, bola de pelo não teve filhotes. mas bola de pelo viaja e viaja muito. dentro da sua cabeça, talvez pelo efeito da cerveja, costuma ir a vários pontos obscuros da cidade. já aconteceu de tomar um banho de chuva sem perceber, pois estava num bairro afastado, perambulando por telhados e observando a lua. em outra ocasião, numa noite de lua cheia, bola de pelo levou um susto ao se dar conta de estar deitado numa almofada, ainda que acreditasse cegamente estar num festival multicultural. imaginou ter o pelo todo pintado com flores coloridas, pequenos arco-íris e uma espécie de cigarro perfumado pendurado na coleira. chegava a miar ao ritmo das músicas e corria pela lama causada pela chuva onde não havia pasto. bola de pelo despertou após sonhar ter encontrado torrão de açúcar, que era uma gatinha doce. eles correram juntos por todo o território e em cima de uma lona estendida sobre uma barraca, tiveram noites românticas. mas torrão de açúcar era somente um sonho de bola de pelo. um sonho acordado. torrão de açúcar ficou só na memória de bola de pelo, embora ele se esforce muito para lembrar de torrão de açúcar, imaginar como seria se ela morasse na casa dos vizinhos, ou que eles vivessem, com uma ninhada de gatinhos, na fazenda onde aconteceu o festival na memória do bola de pelo, que deixaria de fumar e a cerveja ficaria só para ocasiões especiais, para ter fôlego e lucidez na criação dos filhotes e no romance com torrão de açúcar.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

sonho II











sonho.
um lugar escuro, num silêncio total. nada se enxerga e nada se escuta. caminho com as mãos na frente, evitando topar com alguma parede ou móvel. chão começa a ficar macio e úmido. vários clarões, onde, como num timelapse, uma cena à minha frente é fixada à retina. um boneco, do tipo que chora quando lhe apertam no peito, dentro de uma caixa, chorando, enquanto a caixa é lacrada. sei que conheço quem está fazendo aquilo, mas não consigo identificar. quero ajudar, mas nesse momento, estou até os joelhos atolado, sem a mínima possibilidade de sair. ateiam fogo na caixa com o brinquedo dentro. às minhas costas, um choro, que identifico e me faz tremer. faço todo o esforço que posso pra tentar ajudar o boneco e acalmar aquele choro, mas à medida em que vou tentando retirar os pés do lodaçal, que já chega próximo ao meu quadril, sinto meus joelhos se soltarem, ficando meus pés e tornozelos soterrados. a dor é insuportável. chega ao ponto em que retiro uma adaga da cintura. antes que eu pudesse estancar tudo, desperto.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

da nação

morreram os grilos
e as vespas

e libélulas
e abelhas
restou só o canto da cigarra

céu

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num voo, uma andorinha é atingida por uma borracha e é sumariamente apagada. a ave não faz ideia de como aquela coisa chega até ela, muito menos quem a jogou. ninguém vê, ninguém percebe, mas a andorinha apagada segue existindo, tentando voar, mas totalmente invisível.

sonho

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sonho. uma serpente enroscando no meu pé, gargalhando e ameaçando dar o bote. eu empurrando um automóvel numa subida, onde eu conseguia empurrar três passos pra frente e dava 5 pra trás. um cara que não reconheci soprando no ouvido: "isso seria um sonho mesmo?", enquanto empurrava o carro. volta a aparecer a cobra. não lembro se ela chega a dar o bote, mas o horror, o medo, a angústia de não saber se estou vivo ou morto são as coisas que me chegam ao despertar. antes, ainda uma voz de um bebê chorando. não vejo esse bebê, mas escuto seu choro cada vez mais claro. não sei se conseguirei segurar o carro. quero procurar o bebê, mas há uma força que me bloqueia. tento cantar pra acalmar o choro da criança e parece que a minha voz aquieta um pouco aquele chorinho triste. entre o dormir e o despertar, uma presença sentada ao lado da cama. ao acordar, só o horror, o medo e a angústia.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

menininha da bicicleta

à minha filha do dia

hoje, passou por mim uma menininha linda andando de bicicleta. estava toda colorida, com uma camisetinha em que se lia a frase "sou poderosa". tinha umas trancinhas no cabelo pretinho, que me fizeram abrir um sorriso. as trancinhas voavam a cada pedalada. não sei se é a ideia da paternidade que está em mim, mas fiquei observando por um tempinho aquele sorriso largo, aquelas gargalhadas de alguém que está descobrindo um mundo. e acho que descobri um mundo todo ao ver aquela criança brincar. descobri muito sobre este e outros mundos. adotei mentalmente aquela menina. ainda que ela esteja com os pais, que os ame, o que faz muito bem, desenvolvi aquele amor unilateral. amanhã, bem cedinho, vou sentar novamente naquele banco da praça e ficar esperando para ver se a menininha poderosa passa novamente, ou se adotarei uma nova criança. tenho muitos mundos ainda a descobrir e paternidade a gastar.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

frente em sonho

escrevo-te esta última carta para dizer-te que mudarei a forma de me comunicar. de agora em diante, tudo ocorrerá através dos sonhos. especialmente, naqueles que sonhamos acordados. ficará melhor assim: poderemos conversar melhor, explicarmos as coisas e até jurar sonho eterno. a escrita está se esgotando nela mesma e talvez isso seja notado pela prática com os sons e as imagens, com os movimentos, com as energias. são fases que a gente precisa passar, mas que acabam sendo superadas por outras. equivale-se aos movimentos artísticos ao longo dos anos: uma coisa já está desgastada e superada, daí vem outra pra estabelecer uma forma mais dinâmica, mais dialógica ao momento. então, a partir de agora, como o momento é outro e a linguagem está chegando ao limite, mudarei a postura e irei fazer performances nos teus sonhos, até que a realidade esteja mais alinhada ao espaço ficcional, até que não exista mais o ficcional.

um arroz para van gogh

enquanto vincent visitava suas obras no museu, meu arroz queimava. e assim, os dias vão passando.
o artista e sua obra jamais devem ser afastados um do outro, sob pena de alguém comer um arroz queimado ou de enfrentar a dureza desmedida da vida.
o artista também precisa tomar cuidado ao concentrar-se no outro, sob o mesmo risco de comer arroz queimado ou de enfrentar a dureza desmedida da vida.

sábado, 28 de janeiro de 2017

carta fechada

ao otário do outro blog
 

não fala mais. há uma certa tendência ao desastre a cada vez que tu fala. as reações sempre são cheias de significados e não estás na condição de interpretar nada. portanto, é melhor não falar. caso fale, acabará ouvindo o silêncio perturbador ou um monossilábico ruído. o temor, o tremor, a dor do estômago e do coração, além da insônia, tudo ficará mais intenso e insuportável. por isso, te peço: não fala! deita, adormece, come algo. faz qualquer coisa que te tire a possibilidade de falar. cala-te! falta em ti um senso do ridículo e a própria sensatez. falta em ti a noção de que estás apodrecendo e que, ao falar, estás jogando tuas entranhas decompostas pra outra pessoa. por isso, fica em silêncio. não escreve também. não te comunica. e tenha em mente que, de uma maneira ou de outra, ainda tens uma longa jornada pela frente em busca da sensatez perdida, da serenidade, da energia positiva e das amizades que se foram. volta-te a ti e ao teu silêncio. a posição fetal é a mais confortável numa hora dessas. fica na tua e não fala mais!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

ataque

sai
para de fazer cera no museu
desenterra dessa covardia
e para
estátua
a valentia está em quem se detém
em quem observa
e deixa acontecer
e espera
mas a valentia só se completa
quando
depois de deter-se

de deixar acontecer e observar o acontecido
parte
vai com tudo
passa por cima feito um rolo compressor

nada de disfonia, disritmia ou dispneia
melhor é o silêncio e a parada cardiorrespiratória
pra depois gritar e acelerar o corpo
e atropelar tudo

melhor é atropelar tudo

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

luz e sombra na balança

há um antagonismo triste. tem quem brinque com sombras, como forma de fuga. não falo na formação daquelas imagenzinhas, que a gente mexe com a mão e faz a sombra parecer um animal. não se trata disso. é algo estranho. é mexer com aquelas coisas que ela obstrui da luz. a luminosidade entra por um buraco, vai lá e tapa com o silêncio. entra uma luzinha por uma fresta, bota o desejo atrás de uma folha de papel, que enfia na fenda. alguém acende uma luz, cobre tudo com o medo. enquanto isso, em outro lugar, há quem ateie fogo, que acende velas, bota lâmpadas mais e mais fortes, tentando construir um farol. e sempre há uma tola esperança de que as duas práticas entrem em equilíbrio algum dia.

domingo, 22 de janeiro de 2017

mensagem recebida

há muitas palavras pra um único significado. aliás, todas as palavras têm o mesmo significado. o problema é que ainda não temos os sentidos suficientemente acurados pra que se possa percebê-lo. tudo é sempre a mesma coisa, meu querido mário quintana.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

pedante, dicionarizado e político

colorido, multicor e policromático
fragmento, pedaço e partícula
sonho, notâmbulo e onírico
disperso, difuso e performático

rarefeito, sonolento e claustrofóbico
reflexivo, refletivo e inequívoco
ensimesmado, intimidado e lunático

canônico?

desnorteado, demente e excêntrico
apelativo, arrítmico e frenético
atonal, dissonante e dodecafônico

patético, atrapalhado e ruptura
dialético, pernóstico e retorno
habilitado, débil e dístico
laboral, explorado e anônimo



El vidrio de la ventana y sus reflejos*



O que passa e o que não passa de um lado ao outro?
Quais são, se existem, os limites da transparência?
O que é olhar e o que é câmera?
O que é vidro e o que é lente?
O que é lente?

Nota do autor/tradutor: o título dessa fotografia, em português, é deforapradentroeprafora

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

a dureza do grão do feijão não pode com o tempo da água fervendo. o destino do feijão é servir de semente ou alimento. há espaço para brincadeiras, para piadas internas, mas também para a sabedoria, para a paciência e para fazer brotar novamente as plantas que têm folhas secas. é tempo de lidar com a memória e a rigidez alheia. é tempo de botar o feijão a ferver

domingo, 15 de janeiro de 2017

cozinhe feijão

paciência é um prato que se come depois. como quando se cozinha feijão numa frigideira. certamente levará mais tempo do que de costume, mas o resultado é bem mais gostoso. a paciência é um tempero poderoso, pois. se conseguires aguardar o tempo necessário, e ao delicioso prato souber aguardar, guerreira de toda vida sois.
sal, alho e orégano a gente deixa pra depois. primeiro, o cozimento, o resto vem de dois em dois.

sábado, 14 de janeiro de 2017

há espaço

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se dancei, não sei
mas gostaria de não dançar
prefiro ficar de par
a não ficar
(as rimas são fáceis nessas horas
as abandono, em nome de uma vida nova
em nome de uma gargalhada
e em nome da terapia)
ah, não há mais espaço pra poemas de amor
mas quem disse que escrevo poemas?
eu sofro palavras, sonho imagens concretas
amo a reunião e o pouso das mariposas
então, voltarei às cartas
borradas pela água da fruta que eu chupei

dos códigos estéticos e dos lugares

queria fazer poesia. escrever um poema falando de uma casa de campo. falar que ela já foi vazia e que os espaços agora estão habitados. uma casa que mais parecia um pedaço de madeira vazio e que uns toques a transformaram em lar. queria escrever em morse, ou algo que o valha, pra renovar a linguagem, tal como a casa estivesse também renovada. a casa, que não teria sido feita pra alguém, após a transformação, assim como um poema, acaba perfeita pra esse alguém. queria transformar essa casa, tal como queria fazer poesia.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

digestão

apático aurículo, inalâmbrico ventrículo
o ventríloquo não quis saber de brincadeira
arrancou o coração do boneco e serviu-lhe numa sopa
e o dublê de pinóquio regozijou-se
- mais uma bela aventura do menino de coração de madeira - disse o carpinteiro
- não, meu amigo - disse o ventríloquo - é só uma forma de digerir as coisas quando estão ruins
dispneico, teve o pulmão também retirado
e servido num pote de sorvete
o boneco só conseguia mover a mandíbula
e degustar o sabor do próprio corpo
e foi assim, cada vez que um problema físico aparecia, lhe era servido o órgão doente como refeição
até o dia em que teve gastrite

auto ajuda

eu jamais fecho uma porta. meu medo de não conseguir sair, quando necessário, ou de que as pessoas não consigam entrar, quando gostaríamos, é infinitamente maior do que o de ser roubado. prefiro ficar de prontidão, ao aguardo da visita ou da vontade de sair por aí, a chavear tudo e passar o dia angustiado, emimesmado, na perspectiva raulseixiana. e sempre haverá um mate, um café, uma cervejinha e um banho quente, ou frio, uma cama acolhedora e uma música certeira pra esses e essas viajantes que habitam este e outros mundos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

canto dissonante

esse canto não é meu
mas esse canto é
a aparência desse canto
a julgar pela aparência desse canto
deve ser meu
mas não é
esse canto não é plágio
esse canto é

é um canto solitário
esse canto
é um canto dissonante
esse canto
é o canto da sereia
esse canto não é

esse canto não é teu
dele eu quero te tirar
a essência desse canto
é julgar pela aparência desse canto
que deve ser teu
mas não é

esse canto não é meu
mas esse canto é

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

carreira solo

um lapso e engoli uma mosquinha
- justo quando quis me tornar vegetariano -
mas sou um réptil tátil e versátil
agora degusto a clarevidência
junto com hipóteses
e versos livres
- não tão livres quanto as energias mecânicas -
previ que vou engolir uma sacola
e me entupir de carboidratos e proteínas dos insetos
e umedecer com o inseticida
e retomar antigos projetos
e parar com eles novamente
melhor voltar ao meu canto




domingo, 1 de janeiro de 2017

olá, noite

látex precipitar
discípulo do nervo
espirro fatal
apelo sufocante
limites inexplicáveis
gônoda febril
ausência
ausência
ausência
prática reprimir
espanto neural
féretro do desejo
ímpeto sucumbir
limites
     do
       lo
        ro
         sos
ausência
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