quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

das convicções sem provas

dizem que a verdade passeia pelas cabeças de muitas pessoas, deixando um pedacinho de si em cada uma delas. dizem, também, que cada pedacinho da verdade está totalmente nu e cada pessoa o veste ao seu gosto pessoal. é raríssimo encontrar alguém que tente primeiro juntar o maior número de pedacinhos pra ver qual roupa combina melhor ou, ainda, se não é melhor deixar tudo exposto para que cada qual perceba da forma mais próxima possível daquela entidade que vagueia pelas sentenças. a maioria esmagadora prefere o mais fácil: cobrir a nudez repugnante do seu pedacinho da verdade com aquela sua roupa fabular. daí nascem as injustiças.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

hoje, encontrei e perdi uma amiguinha

uma formiga bem pequenininha corre pelo chão do meu apartamento. penso em gravar um vídeo dela, mas algo me detém. fico observando por um bom tempo, enquanto o bichinho corre pra lá e pra cá. talvez procure uma saída, talvez comida. talvez os dois. fico tentando adivinhar, enquanto faço perguntas em pensamento: "o que tu procura, amiguinha?"; "pra que tanta pressa? para um pouquinho, que eu tenho açúcar na dispensa e te coloco um punhadinho perto". imagino que ela faça o mesmo: "moço, como eu faço pra chegar ao térreo?"; "onde fica o vaso de plantas mais próximo?". percebo que estamos incomunicáveis! fico preocupado com a solidão da minha amiguinha e que, por mais que eu me aproxime dela e tente ajudá-la, certamente assustarei a pobre e solitária formiguinha. por um instante, chego a pensar em esmagá-la e livrá-la da solidão e da angústia de não encontrar o que procura. mas me dou conta de que é a única vida animal presente comigo no momento e me solidarizo com ela. penso em dar-lhe um nome. talvez lucinha, que pode servir também como apelido. mas acabo desistindo e preferindo chamá-la só de amiguinha, pois já estou quase adormecido e não me vejo em condições de bolar um nome que combine com ela. depois de um tempo, já com os olhos muito pesados, quase fechando, começo a desconfiar de que estou sonhando e que em instantes essa formiguinha se transformará numa formiga gigantesca que sairá derrubando tudo por dentro de casa, pulará pela sacada e irá perambular pelas ruas. um grito vindo da calçada me desperta. como perdi a minha amiguinha de vista, corro para a sacada, temendo estar sonhando e que ela estivesse ainda crescendo, a ponto de desafiar um cão de rua que vive nos arredores. mas foi só uma brincadeira entre amigos bêbados, tentando usar a voz em falsete. volto ao sofá e encontro minha amiguinha encolhida num canto. espero que esteja dormindo, mas que não sonhe que eu encolhi ao seu tamanho.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

sobre a lucidez

jejum incômodo esse
que acomete minha loucura
- há um tempão que não perco a cabeça
disfarço, quebrando alguns utensílios e rasgando dinheiro
grito na rua, falo sozinho
só pra que não percebam
minha carência de insanidade
sinto saudade
de quando corri riscos
escrevi desaforos
declarei amores
mas o jejum veio pra me fazer pagar contas em dia
manter o cabelo curto
lavar a louça
e fazer planos

domingo, 5 de fevereiro de 2017

contraste

há um contraste inquietante passando pela janela do meu quarto. há pouco, dia. agora, noite. um pedaço de parede clara divide o espaço com baluartes e um fundo escuro. uma pomba dorme no ninho enquanto um morcego dá um rasante estridente. o calor quase insuportável jogando com o piso frio. uma lâmpada acesa e uma vela apagada. sem que eu esperasse, a campainha rompe o silêncio e a calmaria. uma visita falsa corre na calçada quando chego à sacada. arrastando os pés, retorno ao conforto da cama, ainda molhada de suor. um travesseiro perfumado e o outro com cheiro de amaciante de roupas. novamente a campainha e dessa vez só um perfume sobe à sacada. alguém fuma na esquina, um grupo de simpáticos malandros gargalham mais longe. já é hora, mas me nego a fechar a janela da sacada, pois a brisa da noite e o luar acabam por iluminar e refrescar meu son(h)o.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

eu e os outros

a única vez em que tive meu próprio rosto foi quando nasci. ao entrar em contato com a equipe de obstetrícia, fui adquirindo outras formas. depois, meus pais, os outros bebês da maternidade, as outras crianças na rua, os irmãos. veio a escola e os colegas me doaram um pouco dos seus traços, assim como receberam alguns meus. na faculdade, a mesma coisa. no trabalho, troquei de características a cada emprego que passava, com cada colega e com cada pessoa que atendia. veio o retorno à sala de aula e, com ela, o intercâmbio facial com outras pessoas. fui adquirindo e doando detalhes, expressões, belezas e feiuras com cada um com quem mantive contato e, aos poucos, minha cara foi se tornando a soma de todas as caras que percebi na vida.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

um gato chamado bola de pelo

bola de pelo é um gato estranho. gosta de cerveja e cigarros. notívago, mas caseiro. costuma tomar diariamente latas e mais latas de cerveja na sacada do apartamento onde mora. raramente sai e mais raramente ainda encontra alguma gata. tanto é que até hoje, dizem, bola de pelo não teve filhotes. mas bola de pelo viaja e viaja muito. dentro da sua cabeça, talvez pelo efeito da cerveja, costuma ir a vários pontos obscuros da cidade. já aconteceu de tomar um banho de chuva sem perceber, pois estava num bairro afastado, perambulando por telhados e observando a lua. em outra ocasião, numa noite de lua cheia, bola de pelo levou um susto ao se dar conta de estar deitado numa almofada, ainda que acreditasse cegamente estar num festival multicultural. imaginou ter o pelo todo pintado com flores coloridas, pequenos arco-íris e uma espécie de cigarro perfumado pendurado na coleira. chegava a miar ao ritmo das músicas e corria pela lama causada pela chuva onde não havia pasto. bola de pelo despertou após sonhar ter encontrado torrão de açúcar, que era uma gatinha doce. eles correram juntos por todo o território e em cima de uma lona estendida sobre uma barraca, tiveram noites românticas. mas torrão de açúcar era somente um sonho de bola de pelo. um sonho acordado. torrão de açúcar ficou só na memória de bola de pelo, embora ele se esforce muito para lembrar de torrão de açúcar, imaginar como seria se ela morasse na casa dos vizinhos, ou que eles vivessem, com uma ninhada de gatinhos, na fazenda onde aconteceu o festival na memória do bola de pelo, que deixaria de fumar e a cerveja ficaria só para ocasiões especiais, para ter fôlego e lucidez na criação dos filhotes e no romance com torrão de açúcar.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

sonho II











sonho.
um lugar escuro, num silêncio total. nada se enxerga e nada se escuta. caminho com as mãos na frente, evitando topar com alguma parede ou móvel. chão começa a ficar macio e úmido. vários clarões, onde, como num timelapse, uma cena à minha frente é fixada à retina. um boneco, do tipo que chora quando lhe apertam no peito, dentro de uma caixa, chorando, enquanto a caixa é lacrada. sei que conheço quem está fazendo aquilo, mas não consigo identificar. quero ajudar, mas nesse momento, estou até os joelhos atolado, sem a mínima possibilidade de sair. ateiam fogo na caixa com o brinquedo dentro. às minhas costas, um choro, que identifico e me faz tremer. faço todo o esforço que posso pra tentar ajudar o boneco e acalmar aquele choro, mas à medida em que vou tentando retirar os pés do lodaçal, que já chega próximo ao meu quadril, sinto meus joelhos se soltarem, ficando meus pés e tornozelos soterrados. a dor é insuportável. chega ao ponto em que retiro uma adaga da cintura. antes que eu pudesse estancar tudo, desperto.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

da nação

morreram os grilos
e as vespas

e libélulas
e abelhas
restou só o canto da cigarra

céu

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num voo, uma andorinha é atingida por uma borracha e é sumariamente apagada. a ave não faz ideia de como aquela coisa chega até ela, muito menos quem a jogou. ninguém vê, ninguém percebe, mas a andorinha apagada segue existindo, tentando voar, mas totalmente invisível.

sonho

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sonho. uma serpente enroscando no meu pé, gargalhando e ameaçando dar o bote. eu empurrando um automóvel numa subida, onde eu conseguia empurrar três passos pra frente e dava 5 pra trás. um cara que não reconheci soprando no ouvido: "isso seria um sonho mesmo?", enquanto empurrava o carro. volta a aparecer a cobra. não lembro se ela chega a dar o bote, mas o horror, o medo, a angústia de não saber se estou vivo ou morto são as coisas que me chegam ao despertar. antes, ainda uma voz de um bebê chorando. não vejo esse bebê, mas escuto seu choro cada vez mais claro. não sei se conseguirei segurar o carro. quero procurar o bebê, mas há uma força que me bloqueia. tento cantar pra acalmar o choro da criança e parece que a minha voz aquieta um pouco aquele chorinho triste. entre o dormir e o despertar, uma presença sentada ao lado da cama. ao acordar, só o horror, o medo e a angústia.
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