sábado, 31 de outubro de 2020

embora tenha lutado bravamente, a dignidade foi assassinada por um punhal que lhe foi cravado na garganta e veio de vagarinho cortando até chegar o esterno, onde foi usada uma furadeira pra brocar, buraco a buraco, cada pedacinho do osso, até que o punhal pudesse seguir seu destino, mas sem antes atacar o estômago. a dignidade, enquanto agonizava, perdia seu estômago. o corte seguiu em direção à genitália e de forma fria e calculada estraçalhou o órgão. tudo isso aconteceu na madrugada, enquanto se ouvia bem longe um aparelho de som tocar a música oração, da banda mais bonita da cidade. o coração evidentemente não foi poupado. nem o globo ocular já seco, nem os pulmões. da vítima só sobrou a obsessão em fazer ressuscitar durante o eterno velório. aqui jaz a dignidade.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

O PESO

 aqui jaz o peso e a mácula trazido e deixada pelo tornado que passa a cada período em que viver não é escolha ou possibilidade. paixão cíclica é mistério dos mais estranhos e clássicos, tanto quanto o translado da alegria em culpa e os pensamentos mais nocivos em epifanias. o traço rude deixado na terra arada pelo tornado é um sulco seco onde poderia brotar um córrego cercado de pães de forma e geleia de amendoim, embora sempre fique aquela sensação de que o ciclo reiniciou e que logo ali adiante no tempo a tempestade retorna, cada vez mais intensa e cada vez mais desafiadora. os sulcos vão tornando-se rugas numa face. aos poucos a terra cansa e de mácula em mácula jaz um peso cada vez maior.

domingo, 12 de julho de 2020

a saudade do furo

não fossem os furos, as coisas planas seriam plenas. mas são os furos e os cálices. e o amanhã que nunca chega.

o verniz na barba descolorida
a bexiga cheia e o fogo dentro do esterno
a saudade
e esses furos que fizeram
e os planos perdidos

e amanhã a gente pode
amanhã

o amanhã é um furo nos planos

quarta-feira, 8 de julho de 2020

um não-autobiográfico metaestudo sobre religião hedonista cultura erva mate chá

uma das características humanas é a busca por encontrar-se no mundo. identidade, pertencimento e outras geografias. vejamos um caso exemplar de alguém buscando e encontrando seu lugar, retirado de uma notícia recebida através de um parente em comum:
dizem que usou uma droga pesada. droga que pode fazer a pessoa sair de si e não mais voltar. como se ela despregasse a energia da matéria, ou alguma metáfora dessas, sem jamais repregar. usou. mas foi diferente. sentiu que havia conseguido quebrar uma barreira que impedia seu contato com o mundo ao qual pertence. um outro planeta, talvez. soaram as trombetas!

domingo, 12 de abril de 2020

XXXXXXXXXXX

enquanto eu aqui, minha alma na cama. coisas loucas acontecem em tempos de pandemia. abro o armário da dispensa e procuro um par de meias. mijo na área de serviço e tomo café sentado na privada. lavo a louça no chuveiro. agora faço café diariamente pra ver se alivia a gastrite que minha cabeça cria. olho pras unhas da minha alma e elas estão longas e lindas. muito bem feitas, aliás. olho pra mim e vejo o tempo perdido e o tempo ganho. o perdido e o ganho. metade se foi, metade ficou. a vida como incenso. a alma minha.

um corte bem feito é um corte discreto
um corte perfeito é um corte gritante

luz na rua
luna nua
viajei à roda do meu quarto
e levei o meu demônio a passear
como fumaça que tá no ar
açúcar queimado é o peito que trata

uma retomada bem feita é anunciada
uma retomada perfeita é percebida

minha alma tem coisas que me despertam muito interesse. talentos, sentidos. coisas sensatas desaparecem na pandemia. quero um suco, espremo um sorriso. tenho fome, como uma gargalhada. ansiedade? uma dose de gozo. café pra gastrite que a cabeça cria. alma de unhas per-feitas. o tempo perdido e o tempo ganho. a vida como incêndio e a alma amada.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019


Engasgo com tua voz
extrema imersão desesperada
com doze tons que organizam a bagunça
no meu pensamento atonal

atual, como a poesia morta
pelos sons que nasceram organizados
os doze irmãos
vão e voltam, verso e inverso

e a matemática
que multiplica
divide
e subverte

irmãos subversivos
que me engasgam com tua voz
atual, como poesia morta
que subverte

os sons que nasceram organizados
extrema imersão desesperada
divide
a matemática

vão e voltam, verso e inverso
no meu pensamento atonal
que multiplica
os doze irmãos

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

carta aberta para os poucos ainda livres

alegando insanidade, vou-me retirando de fininho. saio de cena por um jogo de sena. venci na vida e perdi no tempo. portanto, não sou um vencedor, tampouco perdedor é um adjetivo que me compete. aliás, não compito. sou um mero artista passando por um breve momento de insensatez. não sei se há vazio na minha bagunça interna ou se há bagunça no meu vazio. prefiro-me retirado a permanecer fingido, prefiro a dolorosa experiência de levar um soco no estômago do que a prazeirosa felicidade de presente que se ausenta pela mão do carrasco. aliás, prefiro o carrasco que bate no peito e se autoproclama ao que executa dizendo que o matador é o que está com o pescoço enrolado na corda. sou insano? não, não sou. estou. a bem da verdade, insensato e insano. o raciocínio lógico me leva a pensar que são opostas, mas insensatez e insanidade convivem. geralmente nos felizes. algumas vezes nos distraídos. quase sempre nos injustiçados. mas vou-me retirando de fininho. insano e insensato. pra que nunca mais aconteça. pra que ninguém mais nos esqueça. nunca mais quero competir. nunca mais quero metade.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

o saco, vazio, foi parar no pé. o sacro vazio não para em pés descalços. a seco, a soco, quem trabalha foi parar no vazio da lona. os dentes arrancados, o chão molhado e uma senhorinha sorridente do lado de fora vibrava. gritavam que saco de pancada vazio não cai longe do pé. foi então que o estômago que já roncava há tempos deu seu rugido e chamou pelos demais. e todos os estômagos foram levantar a voz contra aquele juiz impetuoso que se julgava o guardião das batatas. e foi assim, num golpe só, que a justiça foi feita. o julgador teve a cabeça cortada e exposta na entrada do vilarejo, pra que sempre seja lembrada a força que tem uma multidão de estômagos. e o vazio do sacro acabou abarrotado de sentidos, lógicas, compreensões e iluminação.

domingo, 27 de outubro de 2019

já são horas
acorda, meu bem
olha o café
deixa comigo
o cheiro do pão quente

já são horas
acorda, vagabundo
come o pão
amassado pelo demo
vai que é tua
cheiro de suor e lágrima

acorda
acorda
acorda
quem tem mais
e quem não tem mais
acorda
acorda
acorda

sábado, 12 de outubro de 2019

a selva bruta

lateja o talo já enrijecido
- enjoa joana -
fluídos que escorrem
pra fora e pra dentro
- enjoa, joana, enjoa -

a flor se abre
- escorre o néctar -
o pêssego partido ao meio
- lá vem o suco -

a seiva bruta vai à fruta
é a selva bruta 
o beija-flor chega à flor
e uma folha rosada do trevo
traga as sobras da seiva

sexta-feira, 1 de março de 2019

jogo de castas mascadas

há muito ciclo sem reciclo
sem pino
vertino

vertido e sorvido
capacho
capaz

a canalhice reposta
sem pano
vertendo

e

a resposta aos canalhas
capricha
replica

atinge em cheio

direto
derruba

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

salve malandragem

revela, cara, revela! distrai o osso, impede o vício e levanta. faz o que tem de ser feito e abre a janela pra respirar. troca a lâmpada queimada e inverte os papeis com o cobrador. dá um pinote e sai. vai visitar a mãe, leva o cachorro e bota o agasalho. não te deixa envelhecer, muito menos envilecer! escuta a mensagem que vem do tambor, que um zé deve ser tratado como o Zé e esteja certo de que o teu zé interior vai te levar pra cima. olha pro lado e repara que tem gente aí junto. e não guarde segredos. revela tudo! revela, cara!

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

parasitas humanoides

por debaixo do cadafalso existe um riso sinistro de quem só está ali pra devorar fígados humanos. curiosamente, tem a mesma índole de quem está sobre outro patíbulo: é mentiroso, mas acusa o enforcado de falsidade; tem personalidade sádica e sente tesão em ver algum diferente sofrer até a morte; só tem amor pela autobajulação e entra em gozo profundo cada vez que percebe a caça a algum adversário. quando acoado por notarem que faz o que acusa nos outros, se esconde. mas no fundo sabe que seu tempo como devorador de fígado é muito curto e teme já ir preso logo que todos perceberem a quantidade de merda que carrega consigo, o quanto é feito de restos, de sobras e de sombras. deixará um rastro de podridão e um punhado de pares que também não resistirão ao próprio instinto destrutivo.

domingo, 4 de novembro de 2018

nós e eles

pensávamos que eles eram tolos, que a visão de mundo deles era a errada e a nossa, a certa. estávamos convictos de que eles não entendiam de nada e que nós tínhamos razão por pura e simples ideia de que conhecíamos bem o assunto porque estávamos envolvidos nele há bem mais tempo, que havíamos lido livros, ponderado pesquisas sérias e conhecíamos melhor a história. acreditávamos que éramos capazes de enxergar melhor o que estava por vir e que eles, os que não acreditam no amor e na humanidade, nas formas diferentes de encarar a vida, os que considerávamos desalmados, acreditávamos que estes estivessem errados. mas também nos parecia óbvio e indubitável que eles se arrependeriam depois de perceberem o erro que estavam cometendo. ao menos a maioria deles nos procuraria pra dizer que haviam sido enganados, ou que não imaginavam que a realidade seria a que nós havíamos avisado. estávamos prontos pra cobrar o aviso prévio ou pra consolá-los e afirmar que estávamos no mesmo barco. mas a razão realmente não era nossa e havíamos nos enganado o tempo todo. boa parte disso tudo não aconteceu e não acontecerá. não houve, não há e não haverá arrependimento. mas ao menos ainda temos a ironia.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018


o maior desafio do ser humano é lidar com o abstrato e o subjetivo. a dependência do referencial nos sentidos e a incapacidade de conviver com o etéreo, a imaginação e a forma de compreender o mundo a partir do olhar do outro são motivos dos sofrimentos da humanidade. fazemos guerras por não sabermos perceber as necessidades, interesses, desejos e angústias do outro. nada que seja concreto poderá angustiar e causar o mesmo sofrimento do que algo abstrato. a dificuldade é tão grande que há quem procure substituir conceito por exemplo e sensações por algo tátil. basta a necessidade de imaginar ou sentir pra que comecem as broncas. a fome, a ignorância em relação aos bens culturais e patrimônios imateriais do outro acabam motivando a desumanidade. a religiosidade alheia, ou a ausência dela, faz com que o indivíduo esqueça dos seus próprios dogmas. E nessa história toda, não faltam pessoas com capacidade de interpretar o mundo bem limitada que acaba acreditando que a solução é o concreto, jogando o medo ao colo dos diferentes.
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